Cássio Corrêa (Brasil)



O Cássio é meu irmão em letras, compartilhamos o mesmo passado mítico de Sorocaba e nos conhecemos na poesia no mesmo desafio de exorcizar os fantasmas e de assumir a sujeira e a beleza que trazemos, sempre cavocando mais um pouquinho. Se degladiam na sua poesia a sua urgência por mais vida e sua extrema auto-crítica… envoltos na banalidade do diadia da cidade e nas palavras de força dos grandes poetas que formaram seu olhar (Whitman, Pessoa, os Beats…). Que a gente continue se retro-alimentando com nossos incômodos!

Segue abaixo uma seleção de 3 poemas do livro “Tudo que você consegue pegar” e, antes de tudo, um poema fresquinho que ele leu em nosso último encontro, todo em cima do poema do Drummond “A Morte do Leiteiro”.

A MORTE DO MOTOBOY

Para Drummond – peço licença

Há muitas coisas pra entregar no país,
é preciso entregar logo.
Há muita pressa no país,
é preciso entregar logo.
Há no país uma legenda,
que o trânsito é uma guerra.
Então o moço que é motoboy,
de madrugada com sua lata velha
(pneu careca, roda rosa),
sai correndo e distribuindo
coisas várias para gente ruim.
Sua moto, sua mochila torta
e suas botas de borracha
vão buzinando a todos na rua
que alguém tem pressa
e veio de sabe-se lá que periferia
trazer o documento
o remédio da pressão
e a pizza
para todos aguentarem
a luta na cidade.

As mãos no guidão cortado
não conseguem gesticular
as coisas que lhe atribuo.
Nem o cara, ignorante de poesias,
sub-empregado de uma transportadora,
com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
Como todos têm pressa,
nem tira o capacete
quando vai deixando
as mercadorias.

E como em toda parte
também tem gente
que precisa dessa muita pressa
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse vão de caminhões,
peguemos o corredor
entreguemos o que for…
E vamos buzinar muito, é claro,
que talvez o barulho resolva.

Meu motoboy afobado
de câmbio seco e duro,
quase flutua entre os carros.
É certo que erro
sempre se faz: marcha raspa,
retrovisor no caminho,
pedestre latindo por princípio
ou um guarda quizilento.
E há sempre um motorista que acorda,
resmunga e torna a dormir no volante.

Mas este entrou em pânico
(pressa que a cidade dá)
não quis saber de mais nada.
Engatou a marcha e
o volante girou em sua mão.
Pressa? Se vence com pressa.
A pressa em plena tarde
liquidou meu motoboy.
Se era noivo (cê tá louco!),
se era virgem (não! Moto chama mulhé…),
se era alegre, se era bom,
se tinha uma filha,
chamada Kétylyn (um aninho semana passada),
se era filho, se era branco,
não sei,
é tarde pra saber.

Mas o motorista perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, assim que é matar alguém?
Pressa que ele tinha também
serviu pra roubar
a vida desse cidadão.
Quem quiser que chame médico,
ninguém bota as mãos
neste filho de Deus.
Está perdida de vez a hora,
só que a cidade geral prossegue,
e a ambulância custa a chegar.
Mas o motoboy
estatelado, ao sol ,
perdeu a pressa que tinha.

Do capacete estilhaçado,
no asfalto esburacado,
escorre essa coisa espessa
que a gente sabe – é sangue.
Por entre a papelada difusa,
a mercadoria estragada do dia,
só escorre essa cor.
Até se junta com a gasolina
que vaza do tanque.
Mas elas não formam nenhum tom adicional,
na tarde que continua apressada,
sem nenhuma gota de aurora.

SOBRE O COTIDIANO

Pensei numa tese, sobre os poetas do cotidiano.
Algo que provasse que são fingidos demais,
E que o cotidiano deles é exótico demais pra ser cotidiano.
Tipo dar o cu no Rancho da Pamonha ou cair de um pogobol.

Mas isso é um tanto rancoroso, e, afinal, não sei da vida deles.

Ainda assim, pensei:
Esse cotidiano deles é muito falso…
Conversando com Jeff e com o Dalmoro,
Falávamos sobre o cotidiano. Nosso cotidiano é banal demais.
Normal demais pra dar a bunda no Rancho da Pamonha.
Cotidiano é se foder no trabalho,
Andar de ônibus cansa,
O povo no camelódromo do terminal é filho da puta,
Individualista como os burgueses, ah, os burgueses do shopping.
E é puta lamentável um cara escrevendo um poema,
A língua meio nos dentes,
Apertando o shift errado e voltando pra apagar.

Certo que o cotidiano é poético.
E é fácil, posso dizer.
Fácil como o choro do cara que vê no velho do filme o pai que morreu em seus braços.
Como a dificuldade de chupar o canudo do milk-shake.
Como o professor que coça o saco disfarçado e suja a calça de giz.
Como o elefante sentado numa balança pra colorir.

Fui em Serra Negra, comprar roupa de frio mais barata.
Bobagem, é o mesmo preço.
Mas lá vi, na praça, uns homens que empurram umas carroças.
Nelas vão as crianças, e os pais tirando foto.
Nas carruagens, Bob Esponja, Dragon Ball, Turma da Mônica.

E a certeza de que a maior poesia sobre o cotidiano
Está sendo escrita ali.

SUPERMERCADO EM CAMPINAS

Mais uma vez é só estar triste e estarei com você Ginsberg?
Andando pelas alamedas do supermercado, fazendo o shopping das imagens e do tédio,
Chego à padaria – mas não quero que a moça grossa seja meu anjo,
E por isso, Walt, não pergunto.

Você Walt, escondido desta vez entre as mangas verdes, muito cedo em agosto,
Com gosto artificial. Você Walt, é deste tempo, e sempre, e sempre estará na boca dos poetas.
Lorca se esconde das velhas crentes, que passam com suas saias fedendo bunda e seus coques bravos.
Quem matou Lee Van Cleef? Quem matou Sarah Tisdale?
Quem matou a moça entre as mortadelas?
Na seção de frios, o salame olha com cara de saco cheio a conversa dos velhos sobre o governo.

Preciso fugir de um segurança, Allen?
Olho com cara feia pras câmeras, pra dar a entender que estou citando esta parte de teu poema.

Uma voz superior mentirosa canta que não vai chorar nem sentir saudades.
As crianças violam o saco de batatas e lambem os dedos.
Os gordos com cavanhaque observam a tabela nutricional das adolescentes de calça apertada.
Ah, Piva, em tua decadência esmolas tábuas de passar.
(E não posso deixar de pensar, Lorca, que os poetas como ele não passam roupa!).

As pessoas são tão mesquinhas, Walt.
Penso se você é elas, ou se negaria.
Mas se penso, te traio, e qualquer conclusão seria minha.

Caminhando pela rua de chuva que me lembra uma Inglaterra de filme,
Ensaio um passo de bailarina pra desviar da lama,
Mas as sacolas me atrapalham.
Estou com vocês poetas.

UM POEMA

Eu preciso escrever este poema
Como se fosse o velho com sacola na mão,
Comprando banana (pra comer com arroz e feijão)
e pão mais barato, no supermercado do outro lado da cidade.
Tentar fazer dela um pouco que seja de sua costa arcada,
De sua camisa de Passeio Ciclístico 2002,
De seu boné amarelo manchado de cal branca,
Do fato de que seu crime – ou prêmio? – foi andar numa rua e eu ver.

Escrever este poema como se pudesse mostrar que
Sua camiseta desbeiçada,
Seu boné cheio de fiapos cinza grudados no forro de feltro,
Seu arroz, feijão e banana,
São escolhas.

Como fazer um poema,
Fugindo de mim,
Sendo um engenheiro torto,
Que copiou a planta da casa do cunhado e trocou a porta de lado pra dar uma de que não copiou.
Fugindo da praça, do hospício, do grito,
Fugindo de casa pra dormir na casa do amigo,
Fugindo dos pais,
Fugindo do Piva.

Um poema que possa ser lido por meus alunos,
Um poema que as donas de casa que escolhem mamão gostem,
Que minha vó morta gostaria,
Que ela leria pras amigas com orgulho,
Que ganhasse um diploma do Centro Cívico da escola,
Que ficasse numa antologia, num livro didático,
Que fosse copiado na agenda de uma menina,
Que fosse decorado por um grupo de adolescentes bêbados e fosse recitado
no meio do Chico Mineiro ou de alguma música da Legião Urbana,
Que pudesse ser exposto no ônibus,
Que embrulhasse o pão,
Que virasse out-door,
Que virasse música sertaneja,
(E que depois fosse tornado chique
pela Adriana Calcanhoto).

Um poema que fosse
mentira.

~ por jeffvasques em 20/02/2011.

3 Respostas to “Cássio Corrêa (Brasil)”

  1. Jeff, obrigado pelas palavras! Muito legal!

    Só essa foto que…

    Abração!

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