Crítica ao conceito de codependência


É importante perceber que a “codependência”, como transtorno psicológico, se populariza a partir de livros de auto-ajuda na década de 80, principalmente através de 3 autoras que dinfundem mundialmente esse conceito: Pia Mellody (“Facing Codependency”), Melody Beattie (“Codependence no More”) e Anne Wilson Schaef (“Codependency, misunderstood, mistreated”). Apesar da importância da popularização desse transtorno realizada por essas autoras, há certamente perigos inerentes ao próprio gênero em que se inserem: a auto-ajuda. Esses livros, em geral, aprofundam pouco o diálogo com os avanços da psicologia e da psicanálise e incorrem em definições abrangentes e pouco precisas.

Pesquisando mais sobre codependência, encontrei dois artigos críticos a essa literatura de auto-ajuda sobre codependência. Infelizmente, estão em inglês, mesmo assim os deixo aqui para quem se interessar: “Quando cuidar se torna doença” de Robert Westermeyer e “Um exame da validade da codependência” de Brian Waterman.

Acho interessante ler esses textos para relativizar o que se desenvolve nesses “clássicos” livros de auto-ajuda sobre codependência. Em minhas primeiras leituras do livro de Melody Beattie, realmente me incomodei com a definição muito ampla de codependência que ela estabelecia: os sintomas eram tão pouco aprofundados, tão abrangentes, que praticamente qualquer um se enxergaria como codependente. E se esse é o caso, não estamos diante de um transtorno psicológico, mas de uma sociedade que cultiva a dependência afetiva como valor. Acredito sim que nossa sociedade estimula e produz a dependência excessiva, mas também entendo que a codependência não se resume simplesmente a isso, apesar de estar a ela conectada: é um transtorno específico em que a dependência atinge níveis patológicos e coloca em risco a “saúde” do indivíduo.

Os problemas dos livros de auto-ajuda sobre codependência

Cito um exemplo para que se tenha uma idéia da generalização excessiva feita nos livros de auto-ajuda: Melody ao dizer que “sofrer diante de uma separação amorosa” é um sintoma da codependência está classificando praticamente toda a humanidade como codependende, já que é normal e esperado que se sofra com as separações… teríamos um sinal patológico se o indivíduo, mesmo vivendo uma relação tranquila e segura, sente constante medo de uma separação iminente. Essa abrangência da definição certamente aumenta as vendas dos livros já que faz com que todos se identifiquem e se vejam “doentes”. Por mais estranho que soe, perceber-se “doente” pode aliviar o peso de assumir a responsabilidade por sua própria vida: “sou doente e se não consigo fazer muito é por causa disso”. Não estou com isso reduzindo a importãncia de perceber-se doente ou portador desse transtorno, apenas ressaltando que o mercado de auto-ajuda também se alimenta da “hipocondria psicológica” de todos nós.

Essa mesma abrangência é a que faz com que se passe uma idéia, nesses livros, de que o cuidar do outro é, em si, patológico. Há pouca diferenciação entre um cuidar saudável, próprio de relações interdependentes, de um cuidar patológico (dependência exclusiva e desesperada de um outro, próprio da codependência). Os autores citados acima, críticos ao conceito de “codependência” dos livros de auto-ajuda, ainda criticam a intensa vitimização dos codependentes com a correspondente ultra-responsabilização de pais e família; a compreensão exclusiva do processo de cura como processo de reviver o trauma e expurgá-lo (sendo que mais importante seria conseguir enxergar o trauma sob outra perspectiva e não revivê-lo, pois um trauma muitas vezes se configura como trauma por ter sido interpretado de uma única forma, exclusiva e limitada); o risco da ampla definição e popularização da codependência (e a consequente auto-diagnose) impedir a compreensão clínica de qual transtorno específico de personalidade o indivíduo possui ou quais outros transtornos secundários estão envolvidos (as ditas “comorbidades”).

Apesar das críticas interessantes realizadas por esses autores, continuo achando muito importante a contribuição dos livros de “auto-ajuda” sobre o tema da codependência, já que até hoje há pouquíssimos estudos de bases mais científicas sobre esse transtorno. O importante, e o objetivo central deste post, é dizer que não devemos nos limitar a apenas esses livros de auto-ajuda, nem a auto-diagnoses. É sempre importante procurar um especialista que possa fazer uma diagnose mais apurada e te ajudar no processo de enfrentamento do transtorno.

Pesquisa científica sobre codependência

Aproveito para divulgar o único estudo acadêmico em português que encontrei sobre a codependência: “Dependência do vínculo: uma releitura do conceito de codependência” de Lygia Vampre Humberg. Sugiro fortemente a leitura desse texto, pois me parece assumir uma postura intermediária e mais sensata entre os livros de auto-ajuda e as críticas apresentadas a esses livros. A autora parte da interessante contribuição dos livros de auto-ajuda, absorve as críticas já apresentadas a esse conteúdo e busca bases mais sólidas pra codependência a partir de Freud, Winnicott (teoria da “maternidade suficientemente boa”), Bowlby (teoria do apego), Bleger (Modelo da Simbiose), esse último, em específico, muuuuito interessante! Para baixar o texto d Lygia clique aqui.

Ah… e a música do Gil veio da epígrafe do trabalho da Lygia… cai muito bem pro assunto! =)

~ por jeffvasques em 02/12/2012.

4 Respostas to “Crítica ao conceito de codependência”

  1. Parabéns pela sua relativização e compartilho dela totalmente! Abraços Christiane

    • Que bom, Christiane! Encontrei, recentemente, o “Simbiose e ambiguidade” do Bleger que trata da dita “codependência” mas com muito mais profundidade… se vc se interessa pelo assunto, vale a pena! beijos, jeff

  2. estava procurando uma matéria que ligasse Winnicott e co dependência, estava difícil, obrigada

  3. Excelente reflexão. Agradeço pelo texto produzido e pelas referências gentil e facilmente disponibilizadas.

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